Osvladir Custódio - Psiquiatria

Há piora da saúde mental nos tempos de pandemia?

Osvladir Custódio • dez. 20, 2021

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A modernidade tornou possível ao homem atravessar grandes distâncias em curto espaço de tempo. Um avião comercial hoje pode ter velocidade de mais de 900 km e dar a volta ao mundo em pouco mais de 40 horas. Uma doença infecciosa pode ter período de incubação de 12 dias. Imagine um infectado contaminando gente de todo mundo em um Congresso. Podemos ter o início de uma pandemia em poucos dias.


Século XX


O homem do início do século XX presenciou uma pandemia com 500 milhões de doentes, uma guerra mundial com metade da população do planeta envolvida e uma crise econômica.

Uma das terríveis consequências da Primeira Guerra Mundial (1914-1918) foi a perda de vidas. Foram milhões de mortos soldados e civis, e outro tanto de feridos ou mutilados. Os países envolvidos perderam significativa parcela da população economicamente ativa. Todo esforço produtivo, antes voltado para a guerra, tinha que se reorganizar em um ambiente pouco propício para o desenvolvimento. Desemprego, fome e instabilidade política e social foram o caldo de cultura que nutriu a ascensão de regimes autoritários. 

A gripe espanhola (1918-1920) foi notável pelo alto número de infectados com cerca de 50 milhões de mortes. Dizimou até mesmo os segmentos tradicionalmente mais robustos da população, os adultos mais jovens. Na saúde mental, o pesquisador Svenn-Erik Mamelund observou as internações psiquiátricas na Noruega e descobriu o número de pacientes hospitalizados pela primeira vez com transtornos mentais atribuídos à influenza. Além disso, apontou que os sobreviventes da gripe espanhola relataram perturbações do sono, depressão, distração mental, tontura e dificuldades para lidar com o trabalho, e que as taxas de mortalidade por influenza, nos Estados Unidos, durante os anos da gripe, correlacionaram-se com o número de suicídios.

E a repetição o que provocaria em nós? Diante disso, como nos comportaríamos? O que diríamos para o homem do século XX?


Século XXI


O homem do início do século XXI presencia uma pandemia com três centenas de milhões de doentes, um período de incertezas políticas com ditaduras ou nações parcialmente livres na maioria dos continentes e recessão econômica. Ainda não encontramos uma forma efetiva para lidar com a pandemia de COVID-19. Nesse momento, os EUA e Inglaterra assistem aumentos de casos. Precisamos volta a ter uma vida normal, mas isso parece uma tarefa difícil de realizar.

A magnitude do envolvimento global, o número de mortos, a imposição de políticas de distanciamento social e as medidas de isolamento e bloqueio tiveram enorme impacto social e econômico nesta pandemia. A desorganização do setor produtivo, a desaceleração econômica e os gastos gigantescos e imprevistos dos governos provocaram desemprego, aumento de preços e inflação.  Medidas de quarentena e distanciamento físico podem estar associadas com solidão e isolamento social, que, por sua vez, podem contribuir para a gênese da depressão, alcoolismo, psicose, sono de pouca qualidade, ansiedade, comportamentos agressivos, pensamentos suicidas e suicídio. O desemprego por si só pode levar a um risco relativo maior de morte por suicídio.

Durante a pandemia, sintomas físicos recebem mais atenção da comunidade médica, mas a saúde mental pode ter importância semelhante em termos de saúde pública. Pesquisas recentes apontam para as consequências do COVID-19 para a saúde mental, que podem ser diferentes das pandemias anteriores. Num levantamento com amostra comunitária brasileira, foi encontrada alta prevalência de depressão (61.3%), ansiedade (44.2%), estresse (50.8%) e impacto psicológico (54.9%) devido ao isolamento demandado pela pandemia. Estão expostos ao maior risco de desenvolvimento de sintomas psicológicos: pessoas mais jovens, aqueles que se sentiam inseguros, tinham um diagnóstico psiquiátrico e/ou outro problema de saúde antes da pandemia, que observaram mudanças no seu estado mental durante a pandemia e que estavam exposto a notícias. 

Um estudo multicêntrico com adultos que receberam alta hospitalar com diagnóstico clínico de COVID-19 demonstrou que apenas 29% dos participantes se sentiram totalmente recuperados no seguimento. Identificaram-se como fatores relacionados à não recuperação, após a alta hospitalar, sexo feminino, meia-idade, duas ou mais comorbidades e doença aguda mais grave. As gravidades de problemas de saúde física e mental estavam intimamente relacionadas.

Durante a pandemia, a prevalência combinada de estudos sobre ideação suicida foi 12,1% e é maior do que as prevalências observadas em períodos anteriores. Os fatores de risco que ajudaram a explicar a ideação suicida foram baixo suporte social, distúrbios do sono, quarentena e fadiga, solidão, problemas de saúde mental e pior saúde física e grave fadiga relatadas por profissionais de saúde da linha de frente do combate ao COVID-19. Os profissionais de saúde que lidam diretamente com pacientes infectados estão em mais risco de sofrimento psicológico e transtorno mentais.

Uma revisão sistemática revelou que, durante a doença aguda, os sintomas comuns entre os pacientes internados no hospital por COVID incluíram confusão, humor deprimido, ansiedade, memória prejudicada e insônia. A mania e psicose induzidas por esteroides utilizados no tratamento do COVID-19 também foram relatadas. É suposto que, por suas características neuroinvasivas e neurotrópicas,  o SARS-CoV-2 pode provocar uma forma subsindrômica ou o quadro completo de delirium e outros distúrbios neuropsiquiátricos, especialmente, em pacientes com prejuízo cognitivo prévio (p. ex., demência).

Após a alta de serviços hospitalares de sujeitos com COVID-19, há uma carga de saúde mental significativa. Num estudo com mais de 236 mil pacientes, a incidência estimada de um diagnóstico de uma doença neurológica ou psiquiátrica, após 6 meses da alta, foi 34%, e  13%  desses pacientes recebiam um diagnóstico pela primeira vez. Esses números eram maiores para pacientes que foram internados em unidades de cuidados intensivos. Outro estudo indicou que, no estágio pós-doença, a prevalência de transtorno de estresse pós-traumático, depressivo e ansioso foi 32,2%, 14,9% e 14,8%, respectivamente.

Conclui-se que a pandemia provocada pelo SARS-CoV-2 trará impactos muito maiores dos que observados até agora. Além dos mortos, desempregados e sem tetos, hoje as facetas mais visíveis dessa pandemia, outras sequelas do COVID-19 terão que ser geridas pela sociedade.

No caso de saúde mental, as preocupações ampliam-se pela magnitude do problema, o estigma associado, o número reduzido de serviços de saúde mental e a falta de coordenação entre os níveis de complexidade de atendimentos para população mais pobre.

O sofrimento psicológico é diferente de uma fratura, em que se pode vê-la ou documentá-la em uma radiografia. Pode gerar desconfiança, apreciação negativa ou consequências prejudiciais para quem o relata.


Precisamos ser mais compassivos e compreensivos com os demais.


Para o impacto social, político e econômico, nossa obrigação é, no mínimo, a vigilância e a obediência as leis.  Podemos em parte acompanhar o risco em todo o mundo de imposições autoritárias, que podem afetar nossa liberdade ou nossa subsistência.  


Toda crise traz riscos e oportunidades. A esperança é uma crença na possibilidade de resultados positivos relacionados com eventos e circunstâncias. E a desesperança também é uma crença, e como tal pode ser mudada em alguma extensão. Por isso, mesmo diante de uma realidade mais difícil, temos que acreditar que o amanhã será melhor. É mais econômico para nossa saúde mental.


Para homem do século XX, diremos que a lição sabemos de cor, só nos resta aprender.


 




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