Osvladir Custódio - Psiquiatria

Chutando, gritando durante o sono?

Osvladir Custódio • 6 de dezembro de 2021

transtorno comportamental do sono REM, parassonia, doença de Parkinson, demência de corpos de Lewy, atrofia múltipla de sistemas, violência



"Há poucos anos, atendia um pastor com doença de Parkinson e perguntei sobre seu comportamento durante o sono. Desconcertado com minhas perguntas, olhou-me como se tivesse descoberto um segredo, projetou seu tronco para frente, suas mãos foram em direção ao pé esquerdo, retirou seu sapato e a meia escura com cuidado e mostrou-me seu pé com um grande hematoma. Nesta noite, sonhara que jogava bola e chutou a parede próxima a cama."


Esta vinheta orienta para a exploração diagnóstica das parassonias, que são comportamentos episódicos, não desejáveis ou desagradáveis que ocorrem no início do sono, durante o sono ou no despertar. 

O transtorno comportamental do sono REM (movimentos rápidos dos olhos - uma fase do sono) é uma das doenças desse grupo e caracteriza-se principalmente pela perda ocasional da atonia muscular durante o sono REM, o que leva, em resposta ao conteúdo dos sonhos, a movimentos motores simples ou complexos que, eventualmente, causam lesões físicas no paciente ou em parceiros de cama. É a única parassonia que requer polissonografia para confirmação diagnóstica.

 

Esta parassonia é comum


Um em cada três norte-americanos reclama de distúrbios do sono durante a vida, e 10% da população em geral atendem aos critérios diagnósticos de perturbações crônicas do sono. Cerca de 1% (IC 95% = 0,61-1,50) sofre de transtorno comportamental do sono REM confirmado pela polissonografia numa população com média de idade de 59 anos.


Sintomas do transtorno comportamental do sono REM


Os comportamentos são frequentemente violentos, podendo causar automutilação ou ferimentos ao parceiro de cama, e as ações dos pacientes, em resposta aos sonhos, são falar, rir, gritar, praguejar, movimentar os braços, agarrar, socar, bater ou correr. Emergem principalmente na última metade da noite em que há mais densidade de sono REM. Diferentemente das parassonias não-REM, o sujeito acorda prontamente, sem confusão e, muitas vezes, se lembra claramente do sonho associado ao comportamento.

A maioria dos pacientes relata seus sonhos como pesadelos, cujo tema envolve perseguição ou ataque. Esses comportamentos, geralmente, ocorrem uma vez por semana.

A maioria dos casos está associada à condição que desencadeia rebote do sono REM (p. ex., primeira noite de pressão positiva contínua das vias aéreas, álcool, intoxicação por drogas, drogas sedativo-hipnóticos e antidepressivas), a doenças neurológicos (p.ex., narcolepsia, tumores e acidente vascular cerebral de tronco cerebral) e a doenças neurodegenerativas, predominantemente, as sinucleinopatias:  doença de Parkinson, atrofia de múltiplos sistemas, demência com corpos de Lewy.

O diagnóstico diferencial envolve condições que causam comportamentos durante o sono: uso e/ou retirada de substâncias psicoativas, algumas formas de epilepsia, encefalopatia epiléptica, despertar confusional, delirium, apneia obstrutiva do sono, movimentos periódicos de membros, síndrome "overlap", transtorno de estresse pós-traumático, crise não epiléptica psicogênica, terror do sono, sonambulismo e transtorno do sono associado a trauma.


Convertendo em doença neurodegenerativas


Três quartos dos pacientes com transtorno comportamental do sono REM convertem, após 12 anos, para uma evidente síndrome neurodegenerativa.

Entre as síndromes neurodegenerativas que podem surgir tardiamente, destacam-se as sinucleinopatias, que apresentam deposição anormal da alfa-sinucleína em neurônios dopaminérgicos e células da glia no encéfalo. Recentemente, um estudo demonstrou que imunofluorescência em biopsia de pele apresenta alta sensibilidade e especificidade em discriminar sinucleinopatias de não-sinucleinopatias, um passo importante para diagnósticos mais precisos.

Uma equipe internacional liderada por pesquisadores da Universidade Washington,  Mayo Clinic e Universidade Mc Gill recebeu financiamento de US$ 35,1 milhões para desenvolver biomarcadores que indiquem quais pessoas com essa perturbação do sono desenvolverão doença neurodegenerativa, qual doença neurodegenerativa especificamente cada um desenvolverá, quando surgirão e com que rapidez os sintomas dessa doença progredirão, o que poderá ajudar a estabelecer as bases para ensaios clínicos projetados para atrasar o início ou prevenir a demência ou o parkinsonismo.


Tratamento dessa parassonia


A abordagem do transtorno comportamental do sono REM inclui psicoeducação, medicamentos, medidas para modificar o ambiente do sono para reduzir o risco de lesões (como mover objetos pontiagudos e afiados para fora do caminho dos braços, colocar um colchão no chão adjacente à cama, e colocando uma barreira protetora no lado da cama) e descontinuação de medicamentos (p. ex., antidepressivos) ou tratamento de condições (p.ex., uso de álcool, apneia do sono com uso irregular de CPAP) que possam contribuir para o aparecimento ou agravar a parassonia.

Clonazepam e melatonina são as opções de tratamento farmacológico denominadas de primeira linha, porém, faltam evidências empiricamente suportadas. Os mecanismos precisos de ação do clonazepam e a melatonina não são claros.

Clonazepam é a droga de escolha, melhorando a frequência e gravidade da parassonia, em pacientes mais novos  sem demência, distúrbios da marcha ou SAOS concomitante. O adverso mais problemáticos efeitos associados são confusão matinal e comprometimento da memória. Melatonina, que tem menos efeitos colaterais, pode ser usado sozinho ou em terapia conjunta.



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